FIDELIDADE A CRISTO GERA SANTIDADE DO SACERDOTE

ANO SACERDOTAL - SIMPÓSIO SACERDOTAL DE RIO BRANCO/AC
TEMA: FIDELIDADE A CRISTO GERA SANTIDADE DO SACERDOTE
PALESTRA DOM MOACYR GRECHI – 02/06/2010 – 19 às 20h

O sacerdote numa sociedade secularizada
Dom Moacyr Grechi
Introdução

1. Ao falar sobre o Padre e o Mundo de hoje, precisamos responder a alguns questionamentos: Quais os maiores desafios para se viver como presbítero hoje? Como redefinir o sacerdote numa sociedade secularizada? E refletir no chamado a viver em comunhão como discípulos missionários de Jesus Cristo. Somos padres porque um dia Cristo nos alcançou e nos chamou e porque o nome do amor, no tempo se configura como fidelidade. Nesta resposta e reflexão trataremos: 1) O sacerdote e seu tempo; 2) A secularização como um processo histórico irreversível; 3) Secularização e mudança de época; 4) O sacerdote globalizado; 5) Identidade do sacerdote, homem de comunhão (doc. de Aparecida); 6) Identidade e Espiritualidade do Sacerdote; 7) A identidade e a missão do presbítero; 8) Na conclusão: o clero autóctone e a resposta para este século; 9) um texto para leitura pessoal: Padres por amor!

I – Sacerdote, o nome do amor, no tempo, é fidelidade!

2. Na passagem do milênio, a Congregação para o Clero atendendo ao pedido do Papa João Paulo II,
dirigiu aos Sacerdotes, no dia 19 de março de 1999, a Carta denominada “ O Presbítero, mestre da palavra, ministro dos sacramentos e guia da comunidade”. Trata-se como diz a apresentação da Carta “de um instrumento que, atento às atuais circunstâncias, é destinado a suscitar um exame de consciência de cada sacerdote e dos presbitérios, bem sabendo que o nome do amor, no tempo, é fidelidade”.

3. No texto são recordados documentos fundamentais para se responder às autênticas exigências dos tempos e para não correr em vão na missão evangelizadora. Logo na Introdução lemos: “Nascida e desenvolvida no terreno fértil da grande tradição católica, a doutrina que descreve o presbítero como mestre da Palavra, ministro dos sacramentos e guia da comunidade cristã a ele confiada, constitui um roteiro de reflexão sobre a sua identidade e sobre a sua missão na Igreja. Sempre a mesma e, no entanto, sempre nova, esta doutrina precisa ser meditada ainda hoje, com fé e esperança, em vista da nova evangelização para a qual o Espírito Santo está chamando todos os fiéis, por intermédio da pessoa e da autoridade do Santo Padre”.

4. A Carta acentua que “é necessário um crescente empenho apostólico de todos, pastores e fiéis, na Igreja, ao mesmo tempo pessoal e comunitário, renovado e generoso” e que devemos  “compreender, de maneira sempre mais profunda, que chegou o tempo de acelerar o passo, de olhar adiante com ardente espírito apostólico, de preparar-se para atravessar os umbrais do século 21 com uma atitude de abrir totalmente as portas da história a Jesus Cristo, nosso Deus e único Salvador.

5. No capítulo1 da Carta, lemos: “A chamada e o envio, por parte do Senhor, são sempre atuais mas, nas atuais circunstâncias históricas, adquirem uma importância particular. O final do século 20 manifesta, com efeito, alguns fenômenos contrastantes do ponto de vista religioso. Se, por um lado, constata-se um alto grau de secularização da sociedade, que dá as costas a Deus e se fecha a qualquer referência transcendente, por outro lado, emerge sempre mais uma religiosidade que procura saciar o inato anseio de Deus, presente no coração de todos os homens, mas que nem sempre consegue encontrar uma realização satisfatória”.

II – A secularização é um processo histórico irreversível.

6. No 4º Encontro Nacional de Presbíteros (1992), o tema central foi “Os desafios da evangelização para o presbítero hoje”. Ao tratar da Secularização e pluralismo religioso coloca-nos num processo histórico sem retorno: “Um dos aspectos mais típicos da sociedade moderna é a secularização, entendida como autonomia das realidades humanas (ciência, econômica, política, técnica...). Isso leva a considerar a religião como um aspecto da vida individual e familiar, mas não mais como o eixo de referência da sociedade. A secularização é um processo histórico irreversível que, junto com ambigüidades e tensões, tem trazido também valores positivos, em termos de liberdade e responsabilidade da pessoa humana”.

7. A secularização apresenta, sobretudo dois desafios: a) A desintegração da uniformidade religiosa: o desmoronamento do monolitismo cultural e ideológico deu lugar a um mundo pluralista e diversificado também no campo religioso. A sociedade brasileira deixou de impor a todos o catolicismo. Incentiva até a livre escolha da religião pelos indivíduos. Isto deu margem a uma grande diversidade religiosa, sobretudo nos meios populares, onde se difundiram novos grupos religiosos e "seitas". b) O deslocamento das preocupações religiosas tradicionais para as dimensões éticas do cristianismo: em várias Igrejas históricas, menos entre as novas denominações religiosas, surge uma consciência de que a fé não é simples crença, mas um fermento crítico transformador.

8. A partir dos dados estatísticos reunidos pelo Pe. Jesus Hortal, SJ, o documento do 4º ENP descreve três tendências básicas na evolução atual do universo religioso brasileiro: 1ª) A permanência de uma religiosidade de fundo. Isto não significa necessariamente um compromisso do indivíduo com uma organização religiosa (Igreja ou congregação). A crença e a prática religiosa passaram para a esfera individual e, às vezes, para a "interioridade" apenas. 2ª) O declínio do catolicismo. Em 1940, conforme o IBGE, 95% da população brasileira se dizia católica. Em 1988, só 85,9%. É o fenômeno do pluralismo religioso. 3ª) A identidade confessional debilitada. O enfraquecimento da identidade religiosa atinge todas as confissões. É conseqüência das mudanças culturais que criam instabilidade nas convicções e fragmentação nos quadros institucionais. É freqüente encontrar pessoas que participam, simultânea e sucessivamente, em cultos de diversas denominações religiosas. As motivações para este comportamento são as mais variadas: desde motivações mais profundas (busca existencial) até "porque a igreja é mais próxima de minha casa". São muitos os que entram e saem de movimentos religiosos. Uma preocupação mais recente é constatar o clima de perplexidade e esfacelamento psicológico com que muitos se voltam para as raízes do catolicismo, de onde saíram. (documento do 4º ENP 35-41)

9. Pe. Edênio Valle interpretando “os sinais destes tempos agitados”, na REB diz que
João Paulo II assumiu, em seu vocabulário, a expressão “sinais dos tempos”, e que é mais adequada aos tempos em que vivemos, mais de 40 após o Pentecostes conciliar dos anos 60/70. Ele falava da necessidade de perceber e responder às provocações que o Espírito Santo está fazendo à Igreja. Tal modo de falar lembra o de Lucas no início de sua narrativa do caminho evangelizador de Jesus (cf. Lc 4,1-2). Ou seja, os sinais tão carregados de contradições que podemos ver que nos tempos atuais são uma “pro-vocação” que o Espírito faz a toda a comunidade de discípulos e discípulas, convocados pela Palavra de Deus. Este neologismo tem uma densidade teológica e bíblica evidente, mas é significativo também do ponto de vista daquele ângulo histórico-sociológico que damos à expressão “figura histórica da Igreja”, e que  João XXIII dava ao termo “sinais dos tempos”, usado também por Jesus.

10. A sociedade secularizada é caracterizada pela individualidade, pelo subjetivismo e liberdade de escolha, pela democracia e autonomia, segundo o filósofo Jurgen Habermas. Já Max Weber em seu livro “A ciência como vocação” afirma “Estou certo de que não se presta nenhum serviço a uma pessoa que "vibra" com a religião quando se esconde dela, como aliás dos demais homens, que seu destino é viver numa época indiferente a Deus e aos profetas”.

11. Em 2004 a Editora Loyola lançou um livro organizado pelo Padre Edenio Valle tendo como co-autores os padres Antoniazzi e Benedetti: “Padre, você é feliz? Uma sondagem psicossocial sobre a realização pessoal dos presbíteros do Brasil”. Este livro apresenta os resultados da pesquisa aplicada aos presbíteros presentes no 9º ENP de 2002. Pe. Geraldo Hackmann, ao fazer uma leitura teológica do livro, afirma que o mundo em que atuam os presbíteros, hoje, está mudando e mudado, assim como a Igreja. Quer dizer que a evolução do mundo e da Igreja, formadores do contexto do ministério presbiteral, não pode ser descurada. Já na Constituição Pastoral Gaudium et Spes encontra-se a constatação de que a sociedade passa por mudanças profundas e rápidas: “O gênero humano encontra-se hoje em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas estendem-se progressivamente ao universo inteiro” (GS 4). E prossegue com a seguinte constatação: “A perturbação atual dos espíritos e a mudança das condições de vida estão vinculadas a uma transformação mais ampla das coisas” (GS 5). As mudanças recentes, com suas inevitáveis conseqüências para a sociedade de hoje, são muito mais perturbadoras, visto que o mundo evolui rapidamente, resultando em um progresso alcançado em tempo cada vez menor, se comparado com as décadas passadas. O mesmo, também, acontece com a economia, hoje globalizada, que provoca o aumento das diferenças entre os povos. O Papa João Paulo II descreve essa realidade do mundo de hoje, com suas luzes e sombras, em diversos documentos: na encíclica Redemptor Hominis, cap 3; na Tertio Millennio Adveniente, cap.4;  na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte,. 49 a 53.
     
12. A modernidade (ou a pós-modernidade) e a cultura urbana trouxeram conseqüências para a religiosidade, como demonstra a pesquisa feita pelo CERIS, cujos resultados apontam para uma religiosidade se caracteriza por ser individualista e intersubjetiva; que está em construção um catolicismo que pode ser denominado de afro-brasileiro, por conjugar crenças, de per si, antagônicas; para uma religião vivida mais a partir das circunstâncias ligadas diretamente à vida pessoal do que a vida social; a conduta moral dos católicos aceita as orientações ético-religiosas apenas parcialmente.

13. Os imperativos que se impõem são muitos, face às necessidades permanentes e novas postas pela sociedade hodierna. Em face disso, o presbítero deverá assumir a sua vocação e exercer o seu ministério pastoral, que, ao lado de sua identidade ministerial, que não muda, exige unir nova feição para poder exercer a sua missão adequadamente., de modo a poder oferecer respostas satisfatórias às interrogações dos homens e das mulheres de hoje, sacudidos por um forte processo de secularização e, ainda mais, de indiferença religiosa, não obstante os inúmeros sintomas de despertar religioso existentes hoje.

III – Secularização e Mudança de Época

14. No documento aprovado pela 47ª Assembléia Geral: “Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil” na primeira parte apresenta o contexto atual e cita os “Desafios em mudança de época” (n.13-31): Na atual realidade, verificam-se situações que afetam e desafiam a vida e o ministério dos presbíteros. Na abordagem dos desafios podem-se destacar “a identidade teológica do ministério presbiteral, sua inserção na cultura atual e as situações que incidem em sua existência” (DAp 192).

15. O presbítero é atingido pelos desafios da cultura atual porque nela está inserido. Estamos vivendo uma mudança de época que além de alterar paradigmas estabelecidos, questiona, prescinde ou nega os valores de muitas instituições. Esta mudança de época, de um lado, fragmenta a vida e as instituições educativas; por outro lado, clama por pessoas integradas, instituições educativas renovadas e capacidade de ler e interpretar os “sinais dos tempos” (GS 4), no horizonte da fé.

16. No emaranhado desta mudança de época, destacam-se algumas transformações entrelaçadas cujas consequências são necessárias mensurar sempre, seja em extensão social, grupal, seja em profundidade no coração e na mente dos indivíduos. Analisadas por cientistas sociais e pedagogos, elas carregam dinâmicas inovadoras, embora apresentem riscos e pontos restritivos, carreguem também dinâmicas inovadoras. Constatam-se mudanças na maneira de lidar com o tempo. Suas características estão no gosto pela rapidez, no centrar-se no instante, nos contatos imediatos e na virtualidade da própria vida. Daí decorre um descaso com a finitude humana, com a consciência histórica, dimensão fundante de nossa identidade humana e cristã.

17. São perceptíveis as mudanças no que se refere à comunicação cujas marcas podem ser o pouco dizer e o muito sentir; o deixar-se tocar e seduzir na base do estímulo-resposta, sem espaço para a liberdade de uma escolha responsável. Neste quadro situa-se o estilo de “marketing” e “visibilidade”, provocando o consumo, a mera aparência, o exibicionismo, a obtenção de aplausos e a religião como espetáculo.

18. Há mudanças na relação com a economia. Além do consumismo, suas características são a tirania do conforto, a busca de facilidades, o esteticismo da vida, a independência no uso do dinheiro, sem preocupação de prestar contas e sem gratuidade. Há mudanças no que se refere à autoridade e ao poder. Suas características são a auto-suficiência, o democratismo e a competição. Buscam-se posições de prestígio e comando sem referências ao serviço e ao diálogo. A universalização da tecnologia tende a pulverizar o poder, como na internet. A ânsia pelo poder instala-se na mente e no coração das pessoas. A opção é por relações horizontais e abertas sem hierarquia, fazendo da reciprocidade um desafio.

19. É importante recordar que o pêndulo da história oscila. Há pessoas e grupos que não se dão conta de viverem as consequências das mudanças em andamento. Há pessoas e grupos que reagem às mudanças fechando-se ao real mediante práticas fundamentalistas, com rigidez, buscando segurança em um estilo de vida próprio do passado. Estas posturas revelam como as mudanças afetam a todos e de modos antagônicos. 

20. Existe um desafio em relação à identidade teológica do ministério presbiteral. Dado que “o Concílio Vaticano II estabelece o sacerdócio ministerial a serviço do sacerdócio comum dos fiéis e cada um, ainda que de maneira qualitativamente diferente, participa do único sacerdócio de Cristo” (LG 10, DAp 193), existe a tentação de considerar o “presbítero somente um mero delegado ou só um representante da comunidade” (DAp 193). Às vezes não se percebe o sentido de que ele, pela unção do Espírito e por sua especial união com Cristo, é um dom para a comunidade. “Todo sumo sacerdote é tomado dentre os homens e colocado para intervir a favor dos homens em tudo aquilo que se refere ao serviço de Deus” (Hb 5,1).

21. Outro desafio se refere aos aspectos vitais e afetivos, especialmente para a vivência do celibato e da vida espiritual. Nota-se hoje uma profunda mudança comportamental no modo como as pessoas se relacionam entre si; por vezes se reinventam vínculos afetivos episódicos ou virtuais. Isso interfere profundamente na intimidade de cada pessoa. Está em moda uma simples aproximação afetiva sem gerar compromisso, correndo-se o risco de brincar com os sentimentos alheios. Também na área da religiosidade frequentemente se busca uma espiritualidade difusa, que oferece satisfações emotivas, proximidade e conforto interior. Por outro lado, por vezes, constata-se a falta de vida espiritual intensa fundada na caridade pastoral, que se nutre na experiência pessoal com Deus e na comunhão com os irmãos; a falta de cultivo de relações fraternas com o bispo, com os demais presbíteros da diocese e com os leigos; a falta de mortificação e entrega apaixonada por sua missão pastoral (DAp 195). 

22. Existem também os desafios que são de caráter estrutural, como por exemplo, “a existência de paróquias muito grandes que dificultam o exercício de uma pastoral adequada; paróquias muito pobres que fazem com que os pastores se dediquem a outras tarefas para poder subsistir; paróquias situadas em regiões de extrema violência e insegurança e a falta e má distribuição de presbíteros nas Igrejas do Continente” (DAp 197). As estruturas eclesiais e todos os planos pastorais de dioceses, paróquias, comunidades religiosas, movimentos e de qualquer instituição da Igreja nem sempre estão impregnadas do espírito missionário. A renovação pastoral e missionária pede que se abandonem as ultrapassadas estruturas que já não favorecem a transmissão da fé (DAp 365).

23. Os católicos não-praticantes constituem um grande desafio pastoral que “questiona a fundo a maneira como estamos educando na fé e como estamos alimentando a experiência cristã” (DAp 287). Muitos são os que não participam da Eucaristia, não se inserem na comunidade eclesial, nem atuam como cristãos na sociedade. Acrescente-se a situação dos que têm deixado a Igreja (DAp 225), em meio ao acentuado pluralismo religioso.

24. Surgem “novos rostos de pobres”, expressando o agravamento das situações de pobreza e sofrimento e o surgimento de novas situações (DAp 65; 402), envolvendo os aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais. Esses rostos interpelam a vida e o ministério dos presbíteros. Vasto campo de atuação presbiteral é a realidade urbana (DAp 509-519), com seus múltiplos desafios, dentre os quais, destacam-se os “novos areópagos e centros de decisão” (DAp 491-500), trazendo consigo a urgência da evangelização da cultura. A presença dos cristãos nestes ambientes tem sido pequena. A formação para neles atuar tem sido insuficiente nas comunidades cristãs e nos próprios seminários do Brasil.

25. A Conferência de Aparecida aponta para desafio de uma verdadeira conversão pastoral, da necessidade de estar em estado permanente de missão, de uma pastoral que vá para além de “mera conservação para uma pastoral decididamente missionária” (DAp 370). Há também o desafio “de viver na Igreja a paixão que norteia a vida de Jesus Cristo: o Reino de Deus, fonte de graça, justiça, paz e amor. Por esse Reino, o Senhor deu a vida” (Doc 87 n.46). Tais desafios envolvem a vida e o ministério do presbítero. Uma verdadeira conversão pastoral deve estimular e inspirar atitudes e iniciativas formativas de auto-avaliação e coragem de mudar várias estruturas pastorais em todos os níveis, serviços, organismos, movimentos e associações.

26. Na mudança de época que atravessamos, as relações entre fé e comunidade muitas vezes sofrem abalos. Uma nova recepção do Vaticano II se impõe, em que a Igreja Povo de Deus se realize na paróquia “comunidade de pequenas comunidades” (DAp 307-310). Missão e comunidade são duas urgências que se completam; não se opõem. A trans-territorialidade da paróquia urbana exige um novo tipo de padre, que vá em busca dos afastados, excluídos, sobretudo os pobres e esquecidos, demonstrando sempre a atitude acolhedora e misericordiosa.

27. A ecologia nos últimos anos tem merecido atenção especial da parte da Igreja e de entidades civis. Cresce a agressão ao planeta enquanto natureza. Em contexto mais amplo, a agressão leva ao aquecimento global, ao esgotamento dos recursos naturais e à exploração predatória da natureza. “A agressão é conseqüência de um modelo de desenvolvimento econômico capitalista-consumista, que privilegia o mercado financeiro e prioriza o agronegócio” (Doc 87 n.37). “A devastação ambiental da Amazônia e agressões à dignidade, à cultura dos povos indígenas, por parte de fortes interesses e grupos econômicos se intensificam” (Doc 87 n.36).

28. Nossos Seminaristas, vocacionados ao sacerdócio, vivem em meio a esta realidade e dela provêm, sendo por ela influenciados. Os presbíteros vivem o seu ministério em meio a estas situações, devendo nelas atuar. Por isso, é importante considerá-las no contexto da formação presbiteral.

IV – Presbítero no mundo globalizado

29. Este foi o tema do 10O ENP DE 2004, que tratou da globalização como um fenômeno que tem provocado mudanças rápidas e radicais em toda a sociedade, exigindo de todos, inclusive dos presbíteros, maior clareza quanto aos seus desdobramentos e conseqüências. Dentre os desafios foi destacado, como compreender a “globalização”, concebida como a internacionalização das relações entre povos, culturas, religiões e, sobretudo, entre blocos de poder e mercados. Para muitos, não passa de um mecanismo perverso de exclusão, empobrecimento e destruição; outros, porém, a aceitam como algo necessário para o crescimento dos países e desenvolvimento humano, embora reconhecendo limites e falhas a serem corrigidos. Como ser padre ou leigo(a) engajado(a) na Igreja, sem se deixar levar pelos fortes apelos do individualismo exacerbado e do consumismo insaciável, da ética subjetiva, do modismo, do virtual, da superficialidade?

30. Há uma série de elementos que nos inquietam: o crescimento do narcotráfico, do poder paralelo do crime organizado e do terrorismo; guerras e tensões internacionais, desinteresse pela política, corrupção em todos os níveis, permissividade sexual, relativismo ético, fanatismo religioso, imediatismo e narcisismo, degradação da família, exclusão crescente, confusão entre o real e o virtual, perda do senso do sagrado. Incluímos aqui os 5 gritos da Amazônia que nos interpelam (Grito da Água, da terra, da Floresta, das Cidades, dos Povos tradicionais). Os  No campo da fé, há milhões de fiéis insatisfeitos que deixam a própria religião ou Igreja e migram para outras. Muitos são os que buscam uma religião de sentimento, sem precisar necessariamente de Deus, doutrina, templo. Diante disso, podemos ceder à tentação de também anunciar uma religião mais light, sem tanto compromisso, onde os sinais externos substituem o testemunho. Ou, pior ainda, trair o Evangelho para atrair adeptos. Sem contar aqueles para quem o fiel passa a ser considerado apenas como um consumidor e a religião uma mercadoria a ser vendida.

31. Nesse cenário, cresce, a cada dia, a privatização do religioso, o fundamentalismo, a busca de comunidades emocionais, o esoterismo e pentecostalismo. Surge também uma nova figura de padre, não mais o irmão entre irmãos, amigo de todos, sobretudo dos mais pobres e sofridos, discípulo do Mestre e da comunidade; não o presbítero pastor do rebanho, profeta que defende a vida, o pai que atende cada pessoa, mas o padre carismático da TV, da rádio, do show, da música, das massas.

32. Um outro fenômeno que nos incomoda é a chamada “destradicionalização”, uma fase de transição, onde os costumes e valores tradicionais são questionados e, muitas vezes, substituídos. São símbolos, vínculos, muitos deles considerados até então como sagrados e intocáveis. Esse confronto entre o já definido e o novo a ser construído exige discernimento pessoal, clareza e maturidade nas opções, consciência ética. As reações diante desse confronto podem ser de insegurança, medo, crise, desistência.

33. Como pode ser também a oportunidade para valorizar o ser humano, a emoção e os sentimentos, as expressões corporais e afetivas, superando o excessivo racionalismo, tão comum entre nós. Dentro desse contexto, o 10.º ENP trouxe para a reflexão questões como a afetividade e sexualidade, área complexa e desafiante. “A vivência do celibato e da afetividade equilibrada numa sociedade hipersexualizada e erotizada é exigente. A sexualidade tanto pode ‘configurar’ como ‘desfigurar’ a pessoa”. O ideal é encontrar na afetividade uma forma de “saborear os encantos da amizade, do amor, da espiritualidade, da mística”; uma fonte geradora de “alegria, paz, serenidade, generosidade, desprendimento”. Por outro lado, a afetividade mal trabalhada pode provocar o jogo duplo, “a inveja, o desejo doentio de mando, o carreirismo, o egoísmo, a rispidez, o mau humor, a indiferença, a agressividade, a inflexibilidade, a rigidez, o autoritarismo e o sectarismo”.

34. Um segundo aspecto diz respeito à espiritualidade. Os presbíteros são “administradores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4,2). Têm por missão lidar com o sagrado e sustentar a espiritualidade do povo. Contudo, muitos presbíteros são ou se consideram “espiritualmente subnutridos”. É comum o relaxamento no que diz respeito à escuta da Palavra, à oração, à vivência dos sacramentos, à caridade pastoral, ao espírito de comunhão e disponibilidade missionária.

35. Outro elemento é a relação dos presbíteros entre si, com o povo e com o bispo. É preocupante o isolamento e a superficialidade nas relações. Espera-se que o presbítero saiba relacionar-se com seu povo com respeito, transparência, diálogo e misericórdia; que demonstre espírito de comunhão e disponibilidade para o serviço em relação ao bispo; e que, com os companheiros tenha um relacionamento marcado pela abertura, cooperação e verdadeira fraternidade.

36. Diante de toda essa complexidade do mundo globalizado, soa em nossos ouvidos a palavra de Jesus: a sociedade tem sua maneira de agir, mas “entre vocês não será assim” (Mc 10, 42-43). Somos chamados a ser sinais de algo diferente. Desafiados a assumir “um estilo de vida não-consumista e não-hedonista”, de maneira sóbria e coerente com o que pregamos. Conscientes de nossa fragilidade, dos medos e incertezas que nos deixam inseguros, somos convidados, na fé, a construir relações adultas e saudáveis com as pessoas, com Deus e com o mundo. Numa atitude humilde de quem se reconhece “apenas servo”, aprendemos a buscar na espiritualidade o caminho para viver o ministério na sua dimensão profética e pastoral, que é também o caminho de nossa realização e do encontro com a alegria. Superando a tentação da sociedade neoliberal, precisamos entender que nossa missão, muito mais do que garantir lugar de destaque no mercado, é a de sermos sinais do Reino.

V – Identidade do Sacerdote, homem de comunhão.

37. Os presbíteros são discípulos missionários de Jesus Bom Pastor, que, hoje, enfrentam inúmeros desafios, entre os quais o da identidade teológica, o da missão inserida na cultura atual e situações que incidem sobre a própria existência. Realça que as comunidades necessitam de presbítero-discípulo e, à imagem do Bom Pastor, ser homens da misericórdia e da compaixão, próximos ao seu povo e servidores de todos. Entre os desafios que incidem sobre a própria existência dos presbíteros o documento cita os ligados a aspectos vitais, à afetividade, ao celibato e o de uma vida espiritual intensa, fundada na caridade pastoral, assim como também o cultivo de relações fraternas com os demais presbíteros e os de ordem estrutural, como as paróquias muito grandes (DAp 195 e 197).

38. Ao aprofundar o referencial teológico do documento de Aparecida o Pe. Geraldo Hackmann trata da Eclesiologia da Comunhão no capitulo V que aponta os discípulos missionários que vivem a comunhão a partir de sua vocação específica: além dos presbíteros, nós bispos somos chamados a viver em comunhão como discípulos missionários de Jesus Cristo, sumo sacerdote, como sucessores dos Apóstolos e servidores da santidade dos seus fiéis.

39. Porque o Espírito Santo guia e anima a sua Igreja (LG 4), abre caminho para que o amor circule entre o Povo de Deus, reconhecemos os lugares eclesiais em que a comunhão e a missão estão profundamente unidas entre si (CfL 32). Neles, presbíteros, bispos e párocos são animadores de uma comunidade de discípulos missionários, onde todos os fiéis são co-responsáveis na formação dos discípulos e missionários (Aparecida 202). Nela deve ser superada a burocracia, e a família cristã é a primeira e a mais básica comunidade eclesial.

40. Os diáconos permanentes são discípulos missionários de Jesus Servidor, chamados a servir, na sua maioria, pela dupla sacramentalidade do matrimônio e da Ordem. Os fiéis leigos/as são discípulos missionários de Jesus, Luz do mundo, com uma identidade própria, porquanto a sua missão se realiza no mundo, mas, também, chamados a participar da ação pastoral da Igreja, com o testemunho da vida e ações no campo da evangelização., a vida litúrgica e outras formas de apostolado segundo as necessidades locais e sob a guia de seus pastores. Segundo o Documento, os leigos necessitam de uma sólida formação doutrinal, pastoral, espiritual e um adequado acompanhamento para dar testemunho de Cristo e dos valores do Reino de Deus no âmbito da vida social, econômica, política e cultural (DAp 212).

41. Os consagrados e consagradas são discípulos missionários de Jesus, testemunha do Pai, e constituem um elemento decisivo para a missão da Igreja, enquanto são presença e anúncio explícito do Reino de Deus. Por isso, chamados a serem especialistas em comunhão, testemunhas da primazia do Reino em um mundo secularizado e da vida discipular.

VI - Identidade e Espiritualidade do Sacerdote

42. Dom Aloísio Lorscheider ao escrever o livro “Identidade e espiritualidade do padre diocesano”, editado pela Vozes, faz uma análise da identidade e espiritualidade do padre diocesano. Na primeira parte ele tem presente a terminologia do padre diocesano e religioso padre, a diocese, o bispo, o presbitério, o povo de Deus; na segunda parte ele analisa o ministério e vida, e na terceira parte a perseverança, os conselhos evangélicos, a afetividade e a espiritualidade, o padre diocesano e os movimentos apostólicos. Devido ao tema que estamos tratando nos deteremos em alguns pontos importantes, contudo, recomendo a todos que leiam este livro para que possam viver mais plenamente a riqueza do sacerdócio em tempo difíceis de mudança de época.

43. Na 1ª  parte do livro, vamos nos deter nas três realidades realçadas no ministério e na vida do presbítero: a Igreja particular ou Diocese; o bispo diocesano; o presbitério. Estas realidades definem a missão e a espiritualidade do presbíterio, de modo particular, do padre diocesano. Outro elemento da identidade e espiritualidade do sacerdote é o amor dele para com a porção do povo de Deus. Entre as diversas imagens a respeito da Igreja, como Corpo de Cristo, templo do Espírito Santo, o Vat. II privilegiou a do povo de Deus. Isso modificou a visão da Igreja que não é só a hierarquia, mas todo o povo de Deus, o povo de batizados para que assim cresça sempre mais o Reino de deus em nossa realidade. Por essa imagem entende-se o povo sacerdotal, profético e régio. A Igreja é o novo Israel, o povo da nova e eterna aliança. Ele foi gerado por Deus no sangue de Jesus Cristo. Esse povo é peregrino na história, de modo que ele prolonga o mistério do Verbo encarnado, morto, ressuscitado na história. Esse povo lembra a eleição realizada, chamamento, consagração, eleição. É o caráter comunitário da salvação, porque ninguém se salva sozinho, como também ninguém se condena sozinho (cf. LG 9). Esse povo não nasce apenas de Deus, mas é orientado para ele. Somos cidadãos deste povo, mas voltados os olhos para o céu. A contemplação e ação andam juntos no povo de Deus, pela adoração do sacrário e da renúncia, do sofrimento. Esse povo é profético porque anuncia o evangelho, lê os sinais dos tempos, discerne a voz de Deus: é um povo sacerdotal porque participa no culto de Deus e transforma a vida diária em oferenda e oblação: é um povo régio porque fermenta as coisas temporais no espírito de Cristo. O povo de Deus evangeliza pela sua própria vida, testemunho. Sobre as nossas costas estão essas responsabilidades para oferecer a Deus um povo santo, missionário, engajado com o qual o Pai sonha, o Filho bem amado deu todo o seu sangue e o Espírito conduz a história até o final dos tempos. Parare populum perfectum, diz João Batista. O povo de Deus com o qual lidamos é um sacramento de Deus, de modo que sejamos pastores conforme o coração de Deus.

45. Dom Aloísio na 2ª parte do livro fala das  tarefas fundamentais na vida presbiteral: a) evangelizar e ensinar. O  presbítero  é  alguém  ligado  à  palavra  de  Deus, com  a  qual  ele  deve meditá-la e
proclamá-la aos outros. b) Evangelizar e ensinar. O presbítero é alguém ligado à palavra de Deus, com a qual ele a deve meditá-la e proclamá-la aos outros. c)  Santificar: o presbítero junto com o seu bispo, é o ecônomo da graça de Deus pelos sacramentos. Eles são os sinais eficazes pelos quais a vida divina do Pai, do Filho e do Espírito Santo chega até as pessoas. Pela celebração sacramental, une-se a imensa caridade salvadora de Jesus. Há a necessidade da celebração diária da eucaristia e com freqüência da reconciliação. d) Apascentar: o presbítero é pastor do rebanho de modo que é preciso ir à frente das ovelhas, dar a vida, morrendo a cada dia no cumprimento dos deveres do seu ministério, conhecer as ovelhas e ser por elas conhecido (Puebla 682-284). A pessoa deverá coordenar os trabalhos pastorais respeitando a liberdade das pessoas. Uma comunidade, pastoral só vai para frente se o sacerdote anima-a e corresponde ao chamado do Senhor. As três tarefas do presbítero diocesano, evangelizar/ensinar, santificar e apascentar devem estar bem ligadas entre si. Isso também faz parte da coordenação pastoral. O ministério presbiteral tem a sua fonte na celebração do sacrifício da eucaristia em Cristo Jesus.

46. Ao tratar da perseverança na 3ª parte, ele fala o quanto ela é custosa: quotidiana vilescun (as coisas cotidianas perdem o seu atrativo). O sacerdote deve ser modelo para os fiéis, seja palavra, conduta, caridade e pureza e estar atento a quatro atitudes: pureza de coração, domínio de si mesmo, docilidade ao Espírito Santo e exercício da presença de Deus.

47. O conhecimento de nós mesmos necessita passar por uma avaliação. Como os outros pensam a nosso respeito e a nossa imagem como fica? Nós somos imagem e semelhança de Deus. Dessa forma Deus nos pede que sejamos perfeitos como Deus é perfeito. O sacerdote é chamado a fazer a vontade de Deus. Jesus fez a vontade de Deus ( Jo 4,34). Temos a vontade significada de Deus e a vontade de beneplácito de Deus. Enquanto a primeira manifesta-se nos mandamentos da lei divina, a segunda nos acontecimentos da vida, é o que hoje denominamos sinais dos tempos.

48. O conhecimento de Deus exige a oração. São João Crisóstomo dizia que quem reza não cai facilmente no pecado. Há diversos tipos de oração pessoal, comunitária e litúrgica. O sacerdote reza a Liturgia das Horas em união com a Igreja e o mundo onde ele vive. Mesmo nas férias, ele reza em união com a criação e com o Criador e Pai de toda a humanidade. Todo sacerdote deve ter um tempo para a oração, estudo, trabalho pastoral. E ainda para  direção espiritual para a orientação de sua vida interior;  confissão freqüente para progredir mais rapidamente no caminho da virtude, e a graça santificante. A formação permanente é outro dado na vida do presbítero para ter um conhecimento profundo da Palavra de Deus.

49. A afetividade possibilita o crescimento da personalidade porque o exercício da afetividade é o cultivo de relações sociais amigáveis.  Em nossa vida presbiteral fica uma pergunta: aceita-se ou não o passado? A resposta deve ser uma só. Devemos aceitá-lo, pedir perdão, sempre que se fizer necessário. Não se deve remoer mágoas passadas. Dessa forma não adianta culpar os pais, os formadores ou a comunidade. Tudo deve ser superado: o processo de maturação é lento. Não se deve perder de vista o ideal, a vocação, a nossa opção fundamental. Para o cristão a opção fundamental é a opção do Reino de Deus, porque ela polariza toda a existência cristã na caminhada para a maturidade afetiva. A sexualidade é básica no campo da afetividade: na realidade ela precisa ser orientada pelo fato de ela ser uma riqueza o qual deve ser integrada no projeto pessoal de vida para não ser negada, nem reprimida. A sexualidade é uma força que perpassa todo o ser humano. Ela pode ser positiva ou negativa. A pessoa deve ser pelo diálogo, no amor verdadeiro, que é o relacionamento entre pessoas, força unitiva na diferença.

50. Na conclusão Dom Aluisio fala que são muitos os movimentos na vida da Igreja. Não podemos esquecer que nós passamos de uma situação rural onde todos se conheciam para a urbana onde impera o anonimato das pessoas. Diversos são os movimentos apostólicos na Igreja, hoje. Nesses movimentos encontramos padres, bispos, embora sejam movimentos tipicamente laicais. Até que ponto o padre diocesano deve inscrever-se nas associações ou movimentos? Será que é preciso pertencer a esses movimentos? O Vaticano II diz que cada estado viverá a santidade própria segundo os próprios dons e cargos. Ele fala do seu tríplice múnus: o vinculo de comunhão sacerdotal no Presbitério, a união fiel e colaboração generosa com o seu bispo. O sacerdote, inclusive o padre diocesano não tem necessidade de se filiar aos movimentos, porque ele tem a diocese, a paróquia, o presbitério com a organização própria dos padres diocesanos. O padre diocesano não deverá afastar-se do seu presbitério, que é o seu habitat normal. O padre diocesano se santificará pela caridade com que Deus amou o mundo. Ele não precisa buscar a sua perfeição e identidade em outras fontes. Ele está incardinado em uma diocese ou igreja particular, dentro do presbitério da Diocese doa-se a ela totalmente em colaboração com o seu bispo e presbitério para que o Reino de Deus torne-se uma bela realidade. Ele não precisa comer em outras mesas, porque o sacrifício eucarístico que celebra, lembra o amor maior, aquele que dá a sua vida por seus amigos (Jo 15,13).

VII - A identidade e a missão do presbítero

51. Nesta última parte do tema vamos trata da Identidade e da missão do Presbítero, a partir do documento “Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil” aprovado pela 47ª Assembléia Geral. “O conhecimento da natureza e da missão do sacerdócio ministerial é o pressuposto irrecusável, e, ao mesmo tempo, o guia mais seguro, bem como o estímulo mais premente, para desenvolver na Igreja a ação pastoral de promoção e desenvolvimento das vocações sacerdotais e da formação dos chamados ao ministério ordenado” (PDV 11).

52. Na linguagem da Igreja Católica, o presbítero recebe vários nomes e é apresentado com várias imagens. Na Sagrada Escritura, dar nome aos seres equivale a designar sua identidade. Assim como “por imagens nos é dado conhecer a natureza íntima da Igreja” (LG 6), também por imagens pode-se conhecer a natureza íntima da identidade do ministro ordenado, como participante do ministério de Cristo, Mestre, Sacerdote e Rei (LG 1). Na tradição popular, o presbítero é chamado de padre. Ao receber o segundo grau do sacramento da Ordem, o presbítero recebe as potencialidades da paternidade espiritual e quando o bispo lhe confere jurisdição designa-lhe um povo, a fim de que venha a ser dele o pai espiritual, com a função de gerar, nutrir, educar, organizar e levar à plenitude uma comunidade do Povo de Deus. Na Sagrada Escritura, aparece o termo presbítero, que designa o ancião, o adulto, já experimentado na vida, que se tornou sábio, mestre, conselheiro e guia. Aquele que recebe o segundo grau do sacramento da Ordem deve ser “mestre da Palavra, ministro dos sacramentos e guia da comunidade”, particularmente “pastor e guia da comunidade paroquial”.

53. O presbítero é verdadeiro sacerdote porque participa do sacerdócio de Cristo (LG 28). De fato, em virtude da ordenação, ele se torna um dom sagrado de Deus para o seu povo. Como “representação sacramental de Jesus Cristo” (PDV 15), o único e eterno mediador entre Deus e os homens, oferece sacrifícios pelo povo. Ele é “segregado para anunciar o Evangelho de Deus” (Rm 1,1). Ele é, por excelência, o liturgo da comunidade e a reúne para o momento mais alto e importante de sua existência, a celebração litúrgica. “O caráter sagrado atinge o sacerdote em tal profundidade que orienta integralmente todo o seu ser e o seu agir para uma destinação sacerdotal. De modo que não resta nele mais nada de que possa dispor como se não fosse sacerdote, ou, menos ainda, como se estivesse em contraste com tal dignidade. Ainda quando realiza ações que, por sua natureza, são de ordem temporal, o sacerdote é sempre o ministro de Deus. Nele, tudo, mesmo o profano, deve tornar-se ‘sacerdotizado’, como em Jesus, que sempre foi sacerdote, sempre agiu como sacerdote, em todas as manifestações de sua vida”.

54. O presbítero é eminentemente um homem de oração, porque pela sua frequência às Escrituras, aos Sacramentos e à recitação da Liturgia das Horas., e pela sua disponibilidade a encontros fervorosos com o Senhor, ele se torna um especialista das coisas divinas, um místico e mistagogo, capaz de auxiliar os fiéis e todos os que o procurarem a encontrar-se com o mistério de Deus.

55. O presbítero é servo, pois participa da missão do Filho do Homem “que não veio para ser servido, mas para servir e dar a própria vida em resgate por muitos” (Mc 10,45). Participa da autoridade de Jesus que coincide com seu serviço, seu dom, sua entrega total, humilde e amorosa pela Igreja (PDV 21). Como diz Santo Agostinho: “Quem é posto à frente do povo deve ser o primeiro a dar-se conta de que é servo de todos. E não desdenhe de o ser, repito, não desdenhe de ser servo de todos, pois não desdenhou de se tornar nosso servo aquele é o Senhor dos senhores”.

56. O presbítero é também profeta, porque anuncia e testemunha a Palavra de Deus “oportuna e inoportunamente” (2Tm 4,2). Ele é o mensageiro da palavra viva de Jesus: o caminho de justiça e a paz que leva à vida, a verdade que orienta os fiéis e todos os seres humanos, a luz que ilumina o discernimento sobre as realidades eclesiais e sociais, a palavra que chama ao seguimento, à conversão e à mudança de atitudes e comportamentos.

57. A imagem mais freqüente na Sagrada Escritura para designar aqueles a quem cabe estar à frente do povo, para serem seus guias religiosos, é a do pastor, sem desmerecer as demais imagens. A formação presbiteral deve integrá-las criativamente nesta imagem do pastor, levando em consideração as realidades e os desafios da ação pastoral, evangelizadora e missionária da Igreja no Brasil.

58. O presbítero é pastor, a exemplo de Jesus, o Bom Pastor que conhece suas ovelhas e elas o conhecem (Jo 10,14), “chama cada uma por seu nome” (Jo 10, 3) e “caminha à frente e as ovelhas o seguem” (Jo 10,4). Ele conduz suas ovelhas às boas pastagens, vai em busca de ovelhas que não são do redil, a fim de que “tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Ele vai em busca da ovelha perdida e alegra-se quando a encontra  (Lc 15, 6), pois as ama e dá sua vida por elas (Jo 10,11). Ele veio para servir e dar a vida por sua redenção (Mt 20, 28). Ele é misericordioso e digno de confiança (Hb 2,17).  “O presbítero, à imagem do Bom Pastor, é chamado a ser homem de misericórdia e compaixão, próximo a seu povo e servidor de todos, particularmente dos que sofrem grandes necessidades. A caridade pastoral, fonte da espiritualidade sacerdotal, anima e unifica a sua vida e ministério. Consciente de suas limitações, ele valorize a pastoral orgânica e se insira com gosto em seu presbitério” (DAp 198).

59. Como pastor, o presbítero, discípulo-missionário-servidor, a exemplo de Jesus que propôs “quando deres um banquete, convida os pobres, os inválidos, os coxos e os cegos” (Lc 14,13), exerce seu ministério num cuidado especial com os pobres e marginalizados. Ele é solicitado a defender a vida e dedicar “tempo aos pobres, prestar a eles uma amável atenção, escutá-los com interesse, acompanhá-los nos momentos difíceis, escolhê-los para compartilhar horas, semanas ou anos (...) e, procurando, a partir deles, a transformação de sua situação” (DAp 397).

60. Como pastor, o presbítero participa da mesma plenitude universal da missão de Jesus Cristo e de sua Igreja. Por isso, participa da missão universal da salvação, levando o Evangelho até os confins da terra. Radicado na verdade e caridade de Cristo e animado do desejo e do imperativo de anunciar a todos a salvação, o presbítero é chamado a uma relação especial com os irmãos de outras Igrejas e confissões cristãs, com os fiéis de outras religiões e com as pessoas de boa vontade (PDV 18).

61. O presbítero é um homem perito em humanidade; por isso, é homem de relação dentro da Igreja e no meio social. Envolve-se com as grandes questões que dizem respeito a toda a sociedade, exercitando a cidadania como dimensão importante na sua vida ministerial. É na relação com o povo que lhe é confiado que se manifesta a amizade, o companheirismo, a solidariedade, assumindo em seu modo de ser o comportamento de Jesus Cristo com as pessoas de seu tempo. Essa capacidade de relação possibilita ao presbítero efetivar parcerias e cooperação no processo de evangelização, dentro da Igreja e no meio social. O presbítero é aquele que sabe dar e receber, evangelizar e ser evangelizado.

62. As circunstâncias atuais levam a ressaltar algumas qualidades que a missão do presbítero-pastor exige:  a) o testemunho pessoal de fé e de caridade, de profunda espiritualidade vivida, de renúncia e despojamento de si; b) a prioridade da tarefa da evangelização, o que acentua o caráter missionário do ministério presbiteral; c) a capacidade de acolhida a exemplo de Cristo Pastor que une a firmeza à ternura, sem ceder à tentação de um serviço burocrático e rotineiro; d) a solidariedade efetiva com a vida do povo, a opção preferencial pelos pobres, com especial sensibilidade para com os oprimidos, os sofredores, em fidelidade à caminhada da Igreja na América Latina, ratificada pela Conferência de Aparecida (DAp 396); e) a maturidade para enfrentar os conflitos existenciais que surgem do contato com um mundo consumista, secularizado, e até hostil aos valores do evangelho; f) o cultivo da dimensão ecumênica, o diálogo interreligioso, no respeito à pluralidade de expressar a fé em Deus e nos valores do Evangelho; g) a participação comprometida nos movimentos sociais, nas lutas do povo, com consciência política diante da corrupção e da decepção política, conservando, entretanto, sua identidade presbiteral, mantendo-se fiel ao que é específico do ministério ordenado e observando as orientações do Magistério da Igreja; h) a capacidade de respeitar, de discernir e de suscitar serviços e ministérios para a ação comunitária e a partilha; i) a promoção e a manutenção da paz e a concórdia fundamentada na justiça (CDC 287 §1); j) a configuração de homem de esperança e do seguimento de Jesus na cruz.

VIII - Conclusão

63. Gostaria ainda de reforçar algumas características da identidade presbiteral, que considero fundamentais: a colegialidade e a comunhão; ser “bom” e não dominador, arbitrário; informado e reciclado, padre de oração e discernimento, inculturado, evangelizador.

64. Nas Diretrizes Pastorais para a Amazônia Ocidental (1991-1994) a Igreja reforça o aspecto da evangelização inculturada e a identidade do clero autótone:  A Igreja na Amazônia quer adquirir um “rosto amazônico” expressando sua identidade “nas diferentes culturas”. As características culturais da Amazônia, o crescimento do subjetivismo e do anonimato das pessoas no processo crescente de êxodo rural e de urbanização, além do reconhecimento dos erros cometidos no nosso modo de atender o povo, impelem os agentes de pastoral a prestar muita atenção às atitudes de acolhida, disponibilidade e delicadeza no trato para com todas as pessoas que se aproximam de nós;  respeitar, amar e valorizar as pessoas na sua cultura local, sem fazer comparações com outras regiões do Brasil ou do mundo.

65. O clero autóctone deve ser formado dentro da sua cultura, a ser respeitada e valorizada pelos formadores. O clero, os religiosos e as religiosas precisam de programas de formação permanente, para poderem assumir a nova experiência eclesial da Amazônia, e, assim caminhar sempre em sintonia com todos os agentes de pastoral. Existe toda uma cami­nhada eclesial que é preciso resgatar para que os agentes de pastoral que continuam chegando à região com grande rotatividade não tenham que começar sempre de zero; que se ofereça oportunidade de formação aos novos agentes de pas­toral para uma correta inserção na realidade amazônica Em relação aos movimentos eclesiais é essencial que sigam as orientações das Igrejas particulares e procurem encarnar o próprio carisma de modo que adquiram características amazônicas e assim possam estar à disposição dos planos de pastoral locais

66. Comemorando 25 anos desde a realização do primeiro encontro, o 13º. ENP foi marcado ainda pelo contexto do Ano Sacerdotal, proclamado no ano passado pelo papa Bento XVI, para comemorar os 150 anos de São João Maria Vianey, patrono dos padres. Pe Paulo Suees, ao tratar da identidade do presbítero e sua missão, afirma que os nossos desafios até agora não foram desafios meramente corporativistas de algumas gerações, desafios individuais de uma categoria profissional, mas desafios entrelaçados com a realidade nos âmbitos eclesial, social e político do nosso país. Ao resgatarmos a memória e a verdade, adquirimos consciência sobre nossa própria identidade. Ao revisitarmos o passado e compartilharmos experiências de dor e alegria, conseguiremos dar novos passos. A luta continua, não na linearidade de uma história de sucesso, mas na dialética de santos e pecadores que somos, que nas alegrias e nas tristezas estão ao lado dos aflitos e que foram consagrados por Aquele que nos chamou.

67. O discernimento é a bussola que nos permite a escolha certa na busca do rumo e o foco na interpretação dos sinais dos tempos, “à luz do Espírito Santo, para nos colocar a serviço do Reino” (DAp 33, cf. GS 4). Ajuda-nos a esclarecer nossa identidade e nossa mensagem missionárias como presbíteros para cumprir a tarefa “de fazer novas todas as coisas” (DAp 131). O discernimento é um processo diário e comunitário, um juízo crítico e dialógico sobre a realidade e a cultura (cf. DAp 280c, 275). Nem tudo o que é culturalmente correto é evangelicamente relevante. Em face da opacidade da realidade e de nossos acessos analógicos à verdade, o discernimento nos encaminha para mais perguntas que respostas. “Um olhar ao nosso momento atual nos mostra situações que afetam e desafiam a vida e o ministério de nossos presbíteros. Entre outras coisas, a identidade teológica do ministério presbiteral, sua inserção na cultura atual e situações que incidem sobre a existência deles” (DAp 192). Onde está nosso lugar neste mundo dividido por pobres e ricos, devotos e secularizados? Estamos numa roda viva: do mundo tribal fomos integrados ao sistema colonial; a partir do Brasil colonial construímos o Estado nacional; o Estado nacional está se inserindo, com perda de autonomia política e econômica, mundo global. O mundo global nos coloniza novamente pelos mercados e meios de comunicação. Somos espremidos como bagaço entre produção e propaganda. E no mundo pós-moderno e, sobretudo, entre os jovens, há indícios de que já passamos da globalização para um neotribalismo sem causa comum. O mundo pós-moderno está se configurando como um mundo pós-secular. Vivemos um momento espetacular e transcultural do retorno da religião, muitas vezes sem Deus ou de aspecto politeísta, com deuses concorrentes, marcados por horizontes de violência, fundamentalismo e fanatismo, práticas esotéricas, banalização e infantilização. Onde está Deus nesse retorno universal do religioso? Religião está na moda, sobretudo uma religião sem Deus, com um crucifixo “heavy metal” no peito, mas sem os crucificados. Qual é nossa mensagem nas favelas e nos areópagos, num mundo onde o problema não é o ateísmo, mas a idolatria do mercado, nos mundos da opulência e da fome?             Todos esses desafios repercutem na vida dos presbíteros. Ao acompanharem as comunidades e lerem os sinais dos tempos, percebem que também sua vida, suas alegrias e tristezas, seus problemas concretos (saúde, sustento) e sua busca de identidade fazem parte da realidade maior.

68. Como superar as perspectivas paroquiais e locais para fomentar a comunhão e a participação presbiteral em nível regional e nacional e manter espaços vivenciais de individualidade? Por causa dos operários, dos desempregados, da juventude, dos pobres e dos índios não nos perdemos em brigas internas, em preocupações exageradas com a nossa identidade. Só sabemos quem somos nós através do encontro com os outros. Para poder anunciar Boa-Nova, que é nossa missão, e apontar para Paz e Bem e vida boa, devemos recorrer ao ímpeto ético do Evangelho. Num mundo marcado pelos imperativos do crescimento e da aceleração, procuramos, a partir da nossa fé, aferir nossa coerência sacerdotal com o Evangelho e nossa relevância social para um mundo que seja de todos. Coerência evangélica e relevância social envolvem nossa missionariedade nos grandes conflitos que atravessam o mundo, os conflitos em torno da redistribuição dos bens e do reconhecimento do outro. Vivemos nossa responsabilidade sacerdotal num mundo secular e pós-secular. Ser responsável significa através do nosso estilo de vida delinear horizontes que permitam dar respostas ou formular perguntas relevantes diante dos desafios da atual conjuntura e estrutura global. A responsabilidade emerge da ética evangélica, da sua capacidade de ir ao encontro do outro. Este outro, que está na contramão do sistema, não é objeto de cálculos ou interesses próprios. Ele não é meio. O outro é fim e dom. A responsabilidade pelo outro nos remete ao núcleo central da ética cristã. Ao mais e ao mais rápido do sistema produtivo capitalista, procuramos responder com o maior, com a justiça maior, que é ruptura, e com o amor maior, que é gratuidade.





IX - Leitura pessoal, uma mensagem neste final de Ano Sacerdotal do Bispo Bruno Forte: Padres por amor.

     Neste ano sacerdotal quero fazer contigo, irmão no sacerdócio, a pergunta que está na base da nossa identidade e da nossa missão: por que somos padres? Quem fez com que déssemos toda a nossa vida por este ministério do Evangelho da reconciliação, da eucaristia e da caridade? A resposta só pode ser uma: Jesus Cristo.
     Somos padres porque Ele nos quis tais, nos chamou e assim nos amou, e ainda nos quer assim e nos ama sempre, Ele que é fiel no amor. O sentido da nossa vida, a razão verdadeira da nossa vocação não está em alguma coisa, talvez até a coisa mais bela do mundo, mas em Alguém: este Alguém é Ele, o Senhor Jesus. Somos padres porque um dia Ele nos alcançou e nos chamou (cada um de nós sabe como: na palavra de uma testemunha, num gesto de caridade que tocou nosso coração, no silêncio de um caminho de escuta e oração, até na dor de sentir que a vida nos parecia como que vazia sem Ele...).
     A Ele que chamava dissemos sim: e desde então se acendeu em nós uma chama de amor, que com a sua graça não mais se apagou. Uma chama que nos faz arder por Ele, desejá-Lo, querer o que Ele quer para nós. Creio não exagerar, nem dizer palavras grandiloqüentes.
     Na realidade, não teríamos podido ser padres e sê-lo na fidelidade, apesar de tudo, se Ele não tivesse no-lo dado a viver em nós, a enamorar-nos Dele sempre de novo. É este amor que nos impulsionou a todas as obras que fizemos pelos outros: desde a simples acolhida de coração à escuta perseverante e paciente, desde o esforço de transmitir a todos o sentido e a beleza da vida vivida para Deus às obras de caridade e ao empenho pela justiça, condividindo especialmente a ânsia do pobre e procurando ser a voz de quem não tem voz. Certamente, parece-nos sempre pouco o que fizemos: sentimos o peso dos nossos erros, cometidos muitas vezes de boa fé; dói em nós a tristeza dos nossos pecados; nos turbam as nossas omissões.
     Se algo de verdadeiro e de belo fizemos, foi porque Jesus nos concedeu fazê-lo: é Ele que se deu a nós e nos tornou capazes de gestos de gratuidade que por nós mesmos não teríamos podido sequer pensar ou sonhar. Esta premissa - testemunho da nossa vida de chamados por Cristo - explica porque sinto a necessidade a cada dia de escutar a Palavra do Amado e de celebrar a Eucaristia e porque creio que estes apontamentos são tão importantes para nós: não se trata de uma obrigação, mas de uma necessidade, não só emotiva (às vezes, pelo contrário, a emotividade parece à parte, totalmente...), mas profunda, iniludível. É a necessidade de preencher a cada dia a nossa vida com Ele: é Jesus que nos disse que para cada dia basta o seu afã (cf. Mt 6,34), isto é, que cada dia é longo aquele tanto que basta para sustentar a luta para conservar a fé. A cada dia nasce o sol para nós e a cada dia o nosso coração sedento de amor tem necessidade que o sol do Amado o alcance e o esquente de novo: se Ele é a nossa vida, o sentido e a sua beleza, outra coisa não podemos fazer que encontrá-Lo ali onde Ele vivo e verdadeiro fala à Igreja e se oferece por nós.
     Que dirias de um enamorado que podendo não sentisse a necessidade de encontrar até a cada dia a pessoa amada, de escutar a sua voz? Se isto vale para o amor humano, que geralmente é tão frágil e volúvel, como poderia não valer para o amor que não desilude e não trai, o amor que faz viver no tempo e para a eternidade, o amor de Deus em Cristo Jesus, nossa vida? Eis onde nasce, pois, a necessidade de encontrá-lo a cada dia, sempre de novo: onde podemos satisfazer esta exigência senão ali onde Ele nos fala e nos garante o dom da sua presença? «O amigo do esposo exulta de alegria à voz do esposo» (Jo 3,29) «Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna» (5,24). “Este é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim”. “Este cálice é a nova aliança no meu sangue, que é derramado por vós” (Lc 22,19-20). Sim, a cada dia temos necessidade de Ti, Jesus: e se no domingo Te encontramos na festa do dia primeiro e último, o dia da Tua ressurreição e da vida nova que Tu dás à Igreja e ao mundo, a graça de poder celebrar a cada dia o memorial da Tua páscoa, na escuta da Tua Palavra, enche de alegria e de paz o nosso coração de sacerdotes.
      Verdadeiramente, não estamos sós no caminho do nosso ministério: és Tu que nos visitas sempre de novo com a Tua Palavra de vida; és Tu que nos visitas nos irmãos e nas irmãs que colocas na nossa estrada; és Tu que no pobre pedes a nós amor e em qualquer um que tenha necessidade do amor nos chamas a dar; és Tu no vértice de tudo isso e como fonte viva deste rio de vida que Te fazes presente na eucaristia, para que nos nutramos de Ti, vivamos de Ti, amemos a Ti, hoje e por toda a eternidade. Por que nutrir-se assiduamente da Palavra de vida e celebrar a eucaristia a cada dia, fazendo de tudo para que esta não falte jamais? Para encontrar-Te, Jesus, luz da nossa vida, amor que dás sentido a tudo e a tudo transformas, amor que torna até um como eu capaz de graça e de perdão. Escuto a cada dia as Tuas Palavras e celebro a cada dia o Teu memorial para que todos possam conhecer-Te e amar-Te do modo como só Tu podes tornar capaz cada um, e porque eu mesmo, que tenho necessidade do pão cotidiano para viver, a cada dia tenho necessidade de Ti para crescer na vida que não acabará jamais. Neste dúplice sentido digo ao Pai, por mim e pelos meus irmãos, as palavras que Tu me ensinaste: “Dá-nos hoje o nosso pão cotidiano”. Na Tua Palavra e no Pão da vida a cada dia posso encontrar-Te, Senhor Jesus, para que eu seja alcançado e transformado sempre mais pela Tua beleza, para ser, apesar de mim mesmo, o reflexo pobre e enamorado de Ti, o Pastor belo. Sei bem que tudo isso poderia tornar-se um hábito e que por isso devo vigiar para que o encontro contigo seja sempre novo: sei também, porem, que o hábito, se é sinal de fidelidade, é algo de verdadeiro e de belo.
     Encontrando-Te, posso dizer verdadeiramente que celebro pelos outros e com eles, mesmo que eles não estejam visivelmente presentes, porque em Ti encontro o povo que me confiaste, a Ti confio o seu amor e a sua dor, ainda que muitos deles jamais o saibam. Este é o ministério da intercessão, ao qual me chamaste de oração pelos outros e no lugar deles, também por aqueles que não conheci e jamais conhecerei, aquela oração que só posso viver de verdade se unido a Ti, em Ti e por Teu meio, porque Tu és o Sacerdote da nova e eterna aliança entregue pela vida., pela alegria e a beleza de cada uma das Tuas criaturas. Sim, porque Tu, Senhor Jesus Cristo, não és apenas verdade e bondade: Tu és beleza, a beleza que salva. Tu és o pastor belo que nos guia para as pastagens da vida, onde está a beleza sem ocaso. A cada dia desejo repousar no Teu peito para escutar-Te: “Compreendeu o sentido das palavras de Jesus, só aquele que repousou no peito de Jesus” (Orígenes, In Joannem 1,6).
    Celebrando a cada dia, espero tornar-me também eu um pouco mais verdadeiro e bom em Ti, Tu que na Tua Igreja me alcanças como o único bem, a bondade perfeita, a beleza que transfigura tudo. Penso que no mais fundo do coração de todos nós padres, sacerdotes da reconciliação, testemunhas do Evangelho, haja esta mesma necessidade: é belo saber que podemos encontrar-te a cada dia e crescer assim na comunhão entre nós e com toda a Igreja no altar da vida. Irmão no sacerdócio, desejo dizer-te que àquela mesa te levarei de modo todo especial, e tu levarás a mim, e junto estará Cristo para levar-nos, levar a nossa cruz e a dos outros da qual devemos nos encarregar, a dar-nos a Sua vida de Ressuscitado, que venceu o pecado e a morte para vencê-los em nós e nos nossos companheiros de caminho, no tempo e na eternidade.
    Termino esta carta com algumas palavras do Cura de Ars, São João Maria Vianney, especial patrono deste ano sacerdotal, para que possamos fazê-las nossas na verdade do coração e da vida:   “Tudo sob o olhar de Deus, tudo com Deus, tudo para agradar a Deus... Como é belo!”
“Não há dois modos bons de servir a Deus. Há um só: servi-lo como ele quer ser servido”.
“O sacerdócio é o amor do coração de Jesus”.
 “Meu Deus, dá-me a graça de amar-te tanto quanto é possível que eu te ame”. Amem!


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